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uma libélula no presa no meu quarto e eu a noite inteira a sonhar com cartas de baralho, papéis voando e bicicletas com tampa de margarina no aro.

dos males o menor





ao menos a bússola do meu coração é certeira

o clima tropical deixa a tristeza constrangida.

queria uns dois dias de chuva e frio para a melancolia, sem ofender a natureza.

o amor é um inquilino escroto que te devolve o apartamento alugado sem pintar as paredes e ainda leva os bocais de luz.

o último beijo foi breve, desajeitado até. mas fora exatamente isso que o tornara inesquecível.

a ausência do desespero de braços e línguas anunciava o óbvio: aquele não seria o último.

não foi por acaso


ela sabia.
foi um exercicio de abnegação disfarçar, fingir, alimentar esperanças ao longo daqueles meses.

um carinho no cabelo, um beijo na testa, mãos dadas durante caminhadas ou no cinema: pequenos gestos que justificavam sua teimosia.

resolveu não enxergar o óbvio, como se tivesse desenvolvido um tipo de miopia emocional que progressivamente ia desfocando sua distância afetiva.

mesmo quando o amor tinha se tornado uma massa disforme e difusa, ela insistiu.

só se tocou quando ao acordar havia ao seu lado na cama apenas uma mancha úmida.
o calor dissipado pelo corpo dela era responsável pelo estranho fenômeno:
ele havia evaporado.

das coisas



era colecionadora por natureza.

mas não de álbuns bonecas chaveiros figurinhas ou dessas coisas todas vendidas em pacotes como fazem as outras crianças.

colecionava miudezas: botões asas de borboleta folha seca besouro fotos de desconhecidos fitas de presente chaves...

e nada novo. tudo usado tudo desprezado rasgado enferrujado jogado fora. tudo que para o resto do mundo não tinha utilidade lhe era de serventia . adotava clipes e biliros achados no chão como quem leva um cachorro rabujo para casa.

ia tudo para a caixa.

não colecionava coisas – pois não as usava com a finalidade para qual tinham sido planejadas suas coisas eram por si: sem finalidade sem presunção sem a obrigação de ter qualquer utilidade além de existir enquanto coisa bela – porque pequena e misteriosa.

não colecionava coisas. colecionava histórias que desconhecia em detalhes pois delas só havia o eco-coisa achado já longe do seu passado

não colecionava coisas. colecionava estrelas – memórias que chegadas não lembravam mais de onde tinham vindo – porque cada miudeza tinha uma luz própria que vinha de muito longe e que ainda brilhava mesmo desbotada rasgada quebrada suja inútil.

E ninguém entendia que enquanto brincava com toda aquela tralha a que chamavam lixo resto inutilidade, a menina brincava de ser divina e era ela o acaso que organizava as estrelas em sitemas solares criando constelações de memórias mortas que ainda ecoavam na existência simples das miudezas na caixa.

gostava de pensar que a caixa era o universo inteiro existindo embaixo da sua cama – como quem cria ratinhos escondido da mãe , ela mantinha o universo cativo e secreto das coisas marginais.

Pensava que um dia também viraria coisa inútil e seria jogada em paz numa gaveta. Ou cairia do bolso do destino e seria coisa-chão, livre da obrigação de ser qualquer coisa além.

solidão é normal. a gente nasce só e morre só. mas é que algumas vezes na vida, por raros momentos, a solidão de um toca a do outro. aí as solidões se encostam e ficam alí se escorando, fazendo um carinho de tangente.

*nota mental: solidão é normal, cedo ou tarde a solidão de um se afasta da solidão do outro e nem adianta insistir, porque quando a solidão sisma em partir não tem quem segure ela.

ah! o amor



num dia como outro qualquer você acorda cara amassada

toma o café já frio esquece o fio dental

pega ônibus desce acena bom dia com licença

sonâmbula vira a esquina e bum! dá de cara com o amor

vê o amor te vendo e fazendo cara de quem não te conhece

aí o amor vai passando e deixa cair um papel com o número do telefone

e você procurando o isqueiro na bolsa nem percebe

o que fazer com os pesadelos? pergunte a Lars




A Confissão do Diretor
(Carta apresentada à imprensa durante o Festival de Cannes. post original em http://cinemascopiocannes.blogspot.com/)

"Dois anos atrás, eu sofri uma depressão. Foi uma experiência nova para mim. Tudo, não importava o quê, me parecia sem importância, trivial, não conseguia trabalhar.
Seis meses depois, como um exercício, escrevi um roteiro. Foi um tipo de terapia, mas também uma procura, um teste para ver se conseguiria fazer um outro filme.

O roteiro foi finalizado e filmado sem muito entusiasmo, feito de uma maneira que usou aproximadamente 50% das minhas capacidades físicas e intelectuais.

O trabalho no roteiro não seguiu meu modus operandi de sempre. Cenas foram acrescentadas sem nenhum motivo. Imagens foram compostas sem lógica ou reflexão dramática. Elas geralmente vinham de sonhos que estava tendo na época, ou de sonhos que tinha tido em outros momentos da minha vida.

Mais uma vez, o assunto era a "natureza", mas de uma maneira diferente e mais direta do que antes. Mais pessoal.

O filme não contém um código moral específico e contém o que alguns poderão chamar de "necessidades básicas mínimas" em termos de trama.

Eu lia Strindberg quando era jovem. Li com entusiasmo o que escreveu antes que ele foi para Paris onde virou alquimista e durante a sua fase lá... o período conhecido como "crise do inferno" - será que Anticristo foi a minha crise do inferno? Minha afinidade com Strindberg?

De qualquer forma, não tenho como pedir desculpas por Anticristo, além da minha crença absoluta no filme - o filme mais importante de toda a minha carreira!"

Lars Von Trier, Copenhagen, 25/3/09


das coisas que fazem eco

coisa boa é ganhar poesia de presente
esse mimo de desanivesário acabou de chegar da minha gêmea saturnina,
simone jubert
artigo de luxo...






Idade Madura Carlos

Carlos Drummond de Andrade

As lições da infância
desaprendidas na idade madura.
Já não quero palavras, nem delas careço.
Tenho todos os elementos
Ao alcance do braço.
Todas as frutase consentimentos.
Nenhum desejo débil.
Nem mesmo sinto falta do que me completa e é quase sempre melancólico.
Estou solto no mundo largo.
Lúcido cavalo
com substância de anjo
circula através de mim.
Sou varado pela noite, atravesso os lagos frios,
Absorvo epopéia e carne,
bebo tudo,
desfaço tudo,
torno a criar, a esquecer-me:
Durmo agora, recomeço ontem.
De longe, vieram chamar-me.
Havia fogo na mata.
Nada pude fazer,
nem tinha vontade.
Toda a água que possuía
irrigava jardins particulares
De atletas retirados, freiras surdas, funcionários demitidos.


Nisso, vieram os pássaros,
rubros sufocados, sem canto,
e pousaram a esmo.
Todos se transformaram em pedra.
Já não sinto piedade.

Antes de mim outros poetas,
depois de mim outros e outros
estão cantando a morte e a prisão.
Moças fatigadas se entregam, soldados se matam
No centro da cidade vencida.
Resisto e penso
numa terra enfim despojada de plantas inúteis,
num país extraordinariamente, nu e terno,
qualquer coisa de melodioso,
não obstante mudo,
além dos desertos onde passam tropas, dos morro
sonde alguém colocou bandeiras com enigmas,
e resolvo embriagar-me.

Já não dirão que estou resignado
e perdi os melhores dias.
Dentro de mim, bem no fundo,
Há reservas colossais de tempo,
Futuro, pós-futuro, pretérito,
Há domingos, regatas, procissões,
Há mitos proletários, condutos subterrâneos,
Janelas em febre, massas da água salgada, meditação e sarcasmo.
Ninguém me fará calar, gritarei sempre
que se abafe um prazer, apontarei os desanimados,
negociarei em voz baixa com os conspiradores,
transmitirei recados que não se ousa dar nem receber,
serei, no circo, o palhaço,
serei, médico, faca de pão, remédio, toalha,
serei bonde, barco, loja de calçados, igreja, enxovia,
serei as coisas mais ordinárias e humanas, e também as excepcionais:
tudo depende da hora
e de certa inclinação feérica,
viva em mim qual um inseto.

Idade madura em olhos, receitas e pés, ela me invade
com sua maré de ciências afinal superadas.
Posso desprezar ou querer os institutos, as lendas,
descobri na pele certos sinais que aos vinte anos não via.

Eles dizem o caminho,
embora também se acovardemem
face a tanta claridade roubada ao tempo.
Mas eu sigo, cada vez menos solitário,
em ruas extremamente dispersas,
transito no canto homem ou da máquina que roda,
aborreço-me de tanta riqueza, jogo-a toda por um número de casa,
e ganho.

dos pequenos gestos

sendo brevidade
num universo em constante expansão rumo ao infinito
é surpreendente encontrar delicadezas vizinhas
essa veio embrulhada em papel de seda
com laçarote de cetim e tudo





uma conversa dez anos antes de maria flor ir embora

cadê você?
aqui
explica como é que funciona
porque eu já tô prestes a desistir
o que?
isso...
as pessoas se interessam por outras
elas saem
elas ficam
elas namoram
parece simples
mas eu não entendo
é simples
o mecanismo
não acontece
não funciona
por que não?
acho que tu fica esperando...
quando a gente espera, nunca acontece
pelo menos é assim que é comigo
não...
não é esperar
o que é?
eu espero um ônibus na parada
porque sei que cedo ou tarde ele passa
eu espero começar um filme, na hora da sessão
e normalmente ele começa
espero que uma hora o sono chegue
e na maioria das vezes ele chega
isso é esperar
tu não acha que uma relação pode chegar também?
não
porque isso não faz parte da natureza
da natureza de ter uma relação
por que tu acha que não?
as pessoas nascem sozinhas e morrem sozinhas
isso faz parte da natureza
da natureza de estar só
então você pode esperar ficar só
ou
fazer algo, que não é esperar, pra conseguir dividir algo com alguém



leia mais sobre maria flor em: http://fiodor.blogspot.com/
obrigada, lilo


felicidade devia ser vendida em armarinho
entre botões e fitas de cetim
no setor de miudezas.


por ser assim


encontrar uma forma de se adequar ao mundo. essa era uma de suas maiores preocupações. acostumada a ausência de intermediários entre sua pele e a atmosfera, o toque do tecido era como tortura. mais que isso: amarrava seus movimentos, pesava sobre o corpo deixando seus passos mais pesados. para não mencionar os sapatos, aquelas âncoras de couro e borracha que isolavam seus pés da terra. locomover-se assim era como ser cega. pois ela sabia dos caminhos pelas pedras ou pela direção do vento que passava sob seus braços.

assim, aprender a ser gente, fabricar-se nesse bicho coberto de predicados e adjetivos, foi tarefa das mais difíceis. como uma criança que tem dificuldade para ler, ela se deixou torturar por castigos e lições. aprendeu aos poucos a pisar com passos mais curtos e retos, a não andar de braços abertos na rua e não rodopiar quando o vento mudasse de direção. aos poucos desaprendeu a ler as saliências do chão com a sola dos pés, esqueceu a língua formigas, as folhas já não sussurravam segredos em seus ouvidos e dançar virou uma atividade restrita aos salões e a passos indexados.



havia se tornado mulher.

dos desencontros




gastei todas as minha lamurias de amor
você venceu eu calei

recolhi as roupas e os bilhetes
você mandou eu obececi

guardei os olhares e todos os charmes
você cantou eu desafinei

desaprendi tua lingua e teus sinais
você falou eu não entendi

estendi bandeiras e perdões aos teus pés
você passou eu só olhei

quebrei copos pedras e pernas
você cansou eu machuquei

depois de malas feitas e dores divididas
você foi eu fiquei


hermeto se escuta de olhos fechados
porque ele pinta no avesso da pálpebra paisagens de sons
saí do concerto cheia de música:
nos bolsos, embaixo das unhas, enroscada nos cabelos, gravada nos ossos
escosta o ouvido em mim que dá pra ouvir ele tocando


na minha retina tem um retrato dela
e no peito, colado no avesso,
um post-it " eu te amo" escrito de caneta bic


parece que ela tem a sorte a seu favor
tudo cai aos seus pés
o mundo foi feito para morrer de amores por ela

mas ela passa e nem percebe
que eu construí o mundo assim
que tudo é perfeito e fácil
porque eu quis assim

da casa à calçada
a rua, o jardim
sou eu o arquiteto da felicidade dela
e ela de tão feliz
nem me nota


que castigo é sentir...
e de que me vale?
sentir não é talento nem dom
muito menos profissão

e sentir tanto assim
me impede de ser coisa além
desse coração rasgado e exposto
à visitação pública

da minha janela

a partir de hoje expandindo meu microcosmo para as miudezas alheias
essa me entrou pela janela e veio parar na gaiola aberta onde vive meu coraçãozinho que tem preguiça de voar


estória de passarins

hoje acordei com a visita de um primo passarim. era um vira-lata da estirpe dos de asas, um reles papa-capim, um dos plebeus voantes de que mais gosto. essa ausência de nobreza lhe dá um sentido sobretudo de levezas. ele me adentrou pela varanda, veio dizer-me de coisas do tempo de eu menina. lembrei-me de um aniversário me feito pela mãe. ela é mesmo intérprete fluente de criança. ela me fez de presente um bolo imenso, que de longe tinha certos ares de... vulcão. era um formato atípico para bolos, mas minha mãe sempre gostava de inventar novidades. a minha roupa nova de parabéns era amarelo canário, tinha umas caixinhas com bombons que lembravam ninhos. era mesmo um aniversário de passarinha. mas o mais melhor veio na agonia da hora de cantar parabéns. o bolo ficara na cozinha, guardado, esperando a hora de entrar em cena. mas ninguém se deu conta do porquê. é que havia um convidado especial. o bolo tinha uma fita azul em cima, cantaram-me um parabéns meio afobado, apressado. aí, sopra a velinha e puxa a fita. sai voando um canário azul, maravilhante, de dentro do meu bolo. minha mãe me deslumbrou por dias seguidos com esse passarim voado de bolo, pareceu coisa de mágico. e o canarinho viveu e deu nascença a uma dinastia canária em meu lar. eles viviam num viveiro enorme e mesmo quando eu os soltava, eles voavam e voltavam pro viveiro. aprendi de prática a criar-me passarim solto.

lagarta

do amor

esse elefante branco que a gente não sabe onde estacionar

das coisas imensuráveis


meu corpo já não é um corpo só


inteiro


molecular


celular


meu corpo é uma nesga de luz


que rasga a carne


e se estende infinito


onde só alcançam os dedos da lembrança perdida


lugar qualquer entre o primeiro átomo e hoje


ali no espaço minúsculo entre os ossos e alma

bulimia


rasgar a boca
esse risco que é minha boca
e que espalha a idéia pelo ar
essa nesga
esse rastro
essa rachadura entre o que pretendo ser e o que digo
boca
buraco
fenda
saída
entrada
rasgo
risco
abismo de sentidos
palavra mal dita
desencontro entre o pretenso e o dito
entre o que sou e o que digo
boquete
palavrão
heresia
prazer
paladar
vômito
buraco
bueiro
buraco
entrada
buraco
saída
minha alma estendida num varal que se pendura entre pré-molares
boca
buraco
fenda
buraco
boca
dentes
minha alma no espaço-entre-ossos
eu fantasma
verbo-alucinação
eu
boca
boquete
garganta
você-eu
língua
eu-você
e as estrelas brincam de big bang por trás do meu umbigo

.

vem de longe
de antes de tudo
o meu saber te amar

veio na poeira da primeira explosão
no silêncio do todo
se movendo

e chegou aqui bilhões de anos depois
intacto, ainda na embalagem
com cheiro de novo e embrulhado para presente

aluga-se


quando é que se escolhe a vida?

quero você, meu amor quitinete

onde eu me espalho e atulho coisas
penduro nas paredes
esparramo pelo chão
empilho nos cantos

habitando, espaçosa, teu coração de alvenaria e paredes brancas

.

coloquei meu corção no penhor

.

a geografia da amizade é dilacerante
eu fico assim
despedaçada
um pedaço de carne
pulsante e vermelha
em cada lugar
onde vive um amigo

.existencialismo tropical

Acordei com vontade de comer pitangas
Como alguém esquecido que voltasse do mar
me lambuzar
manchar todas as camisas
e as cortinas da sala

hoje quero cair em cheio
como a chuva que vem de lá
molhar o chão do quarto de hotel
desfazer malas e certezas

e ao olhar no espelho
ver que penso tudo que vejo
e sinto com minha razão
como quem comesse pitangas

das coisas que permanecem




Depois de dois anos morando fora, voltei para casa dos meus pais. Remexendo em minhas coisas (que a essa altura já foram parar na garagem) encontrei minhas agendas: os diários da minha adolescência, tempo em que o maior problema da minha existência era Felipe Mendonça do 1° C não retribuir meus olhares.

Mas entre papéis de chocolate e poesias do Vinícius, encontrei vestígios da Amanda de hoje. Do alto dos meus 14 anos já detestava filmes dublados, donzelices, pessoas mal vestidas e festas de 15 anos. Descobri também que minha maior felicidade ao trocar de turma no primeiro ano de escola foi descobrir que nela só havia 10 meninos e 32 meninas(!!!). Mas nem adianta pensar: que sapinha safada! Nessa época eu estava ocupada demais em ter paixões platônicas por meninos que não davam a menor bola para mim. Além do mais, em breve descobria que a maioria das 32 era insuportável, que os meninos eram muito mais legais e que eles é que seriam meus amigos durante todo o 2º grau.

Lembrei de como eu me sentia diferente dos outros (e gostava disso!), do meu gosto por escrever, da paixão pela poesia, de como eu me sentia segura por ser quem eu era e por minha beleza fora dos padrões. Eu já estava ali. Não importa o quanto a escola e os outros tentassem me dizer que o certo é ser igual, que existe um Deus cruel e vingativo, que mulher que anda fora da linha pode ser chamada de puta ou sapatão (eu fui chamada dos dois, claro! e sem motivo, juro!) e que a felicidade está endereçada só pra quem chegar ao fim daquela linha sem ter pisado fora.

E foi ali, em meados de abril 1996, que dei de cara com uma frase esquecida desde então, e que hoje entendo melhor: “Faze do teu delito o vão que te permite ver o sol”. Como se com a minha sabadoria larga e rasa de 14 anos, eu tivesse colado aquele conselho ali sabendo que 13 anos depois o teria posto em prática.

Mesmo que o meu “delito” tenha ocorrido tão longe de casa e do olhar tão crítico da minha mãe, me sinto orgulhosa dos meus “pecados” e do caminho ensolarado que percorro desde então.

ah! a frase é da Cássia Eller

por ser de capricórnio

As costas despelando depois do dia de sol (não qualquer um: a quarta-feira mais quente e linda do ano!) foi culpa da mania hereditária de não pedir ajuda.

Mas o despelar, a pele queimada, morta, só senti uma semana depois, no banho.

Prevendo a dificuldade de dar conta disto também sozinha, dirigi-me às Lojas Americanas mais próximas.

O objeto de desejo: um escovão.

E lá estava: entre, buchas e fivelas de cabelo, o derradeiro atestado da minha total independêcia.

Aí bateu uma angústia esmagadora, uma tristeza de não ter quem esfregasse as minhas costas no banho... e a sensação de que se eu comprasse aquele escovão estaria assumindo uma longa vida de banhos sozinha e costas despelando.

Pensei em mim mesma na frente do ventilador, olhos arregalados tentado tirar um cisco do olho direito, ou caída no chão da cozinha com uma crise de ciático, ou então tendo que tomar um milk shake de ovomaltine sozinha, ou colocar eu mesma o termômetro e checar a temperatura, ou tendo que passar o protetor solar fator 250 quando a camada de ozônio já tiver virado uma lenda! e dezenas de outras pertubadoras projeções...

o escovão? deixei nas Lojas Americanas da Rua das Laranjeiras.. pendurado, com aquela cara de quem descobre um segredo : sim, eu sou uma romântica incurável!mas não conta pra ningém, por favor...

.

devo confessar minha paixão pelos advérbios
essa forma de ser palavra
de conjugar substantivos

de antes da desilusão

A minha mais nova poesia
É um brocado de veludo azul
Onde vou costurar vaga-lumes
Vindos do país de longe
De antes do Vir-a-ser

Da minha nova poesia
Vou fazer um vestido de baile
De saia rodada
Barra bordada
E decote de lua minguante
Para dançar em festas que não existem mais
Onde a orquestra
Vai tocar uma velha canção
Que fará flutuar castiçais
E velhinhas em suas mesas

antes

gostava de ficar à sombra do tempo
debruçada na janela
a sentir o cheiro de melancia que vinha do mar
e brincar de mímica com as nuvens

.


ontem choveu em mim
afogando meus vales
engrossando meus rios
cairam árvores e encostas
trovejaram todos os pensamentos que não gosto de pensar
a ventania derrubou livros e lembranças das estantes

mas quando o vento pára de soprar
o céu se abre um pouquinho
meu cheiro é o de terra molhada
e as aranhas, formigas e abelhas
recolocam tudo
vagarosamente
em seu devido lugar

da minha falsa grandiosidade

eu queria ser
esmagadora
catastrófica
escandalosa
como um vulcão
mas sou miudinha
e caibo quietinha
no teu bolso

o mistério da foto na caixa de leite

e no dia em que ela morreu
para o espanto do médico legista que realizou a autópsia
lá estava
entre o baço e rim esquerdo
o homenzinho há muito desaparecido
desorientado e faminto

.

meus cabelos vermelhos e esse vestido amarelo não disfarçam: minha cor é gris

.

eu vim ao mundo com duas lentes macro no lugar dos olhos
me apego aos detalhes às texturas
e me assusto facilmente com a formiga gigante dentro do pote de açúcar

me dói mais um espinho no pé que um murro no estômago

.

os animais selvagens e as dores deveriam ser inomináveis
determinadas coisas não cabem em palavras
como denominar esse sentimento de orvalho
que fica na beira dos olhos na hora da despedida

.

não sou lá muito afeita aos sinais de pontuação
esses trombos que ficam entre um sentimento e outro
e interrompem o fluxo sanguíneo da poesia

cretinices de amor


talvez se eu
pudesse me virar do avesso
e pôr na mesa
sentimentos e entranhas

e se você
botasse as mãos lá dentro
tateasse com delicada excitação
achasse o teu nome bordado em meu ventrículo esquerdo

juntaria os pedaços
ou puxaria o fio
se assim fosse
deixaria o sangue e a saudade escorrerem quentes pelo chão
ou iria buscar um balde
?

existencialismo fashion


difícil é encontrar
uma roupa que caia
bem sobre esse peito
aberto com as costelas
engaiolando meu coração

e que com combine com meus sapatos azul-magritte

.

qual a matéria da poesia
a cor da angústia
a gramatura da dor

quero imprimir
minha alma numa gráfica
rápida

distribuir nas esquinas
como propanganda de agiota
e vê-la voar raso pelas calçadas sujas da conde da boa vista

.



me faço pequenina,
tamanho de um botão,
só pra você me carregar no bolso e me torturar sempre que tiver raiva.








devia haver um jeito simples de pedir desculpas...mas não há.

sussurro


como salvar um afogado que se deita no fundo da piscina enfia uma mangueira na boca e abre a torneirinha?

quem chora baixinho enterrado no quintal?

de onde vêm todos os sonhos ruins?

o que fazer com meus suicídios inconscientes?

princípio do reverso

eu quero o avesso

deixar a etiqueta de fora

a bainha desfiada

usar os ossos sem a carne e esculpir neles heras e flores azuis

engolir os cabelos

cuspir escorpiões escarlates


encontrar a nascente das unhas

e num suspiro último aspirar a cidade e suas luzes

para expirar num sopro longo a multidão sombria que habita em mim

insignificância ontológica

vivo num mundo de gigantes
sou o bicho-de-pé da humanidade

auto|autópsia

eu preciso de microscópios para me encontrar
para encontrar em mim minha partícula essencial...
e eu sinto
enquanto isso
em algum lugar muito dentro e muito escuro
a partícula minúscula que passeia escolhendo
o melhor lugar para se esconder de mim
e me comer de dentro para fora
silenciosamente
até eu ser nada
nem sombra
nem sopro
ou idéia


eu vou morrer de mim

egofagia

eu tenho esse desejo estranho de me dilacerar... retalhar a carne, fatiar os ossos,
desfiar os sentimentos e distribuir pelo mundo como lembrancinhas de viagem:
"fui à amanda e lembrei de você".
uma vontade de fim e de eterno, de expansão e fragmentação,
como se fosse possível estar em todos os lugares e amar todas as pessoas
e ao mesmo tempo me livrar mim.

transtorno (ou mensagem aos idiotas do mundo)


já passei as correntes e fechei as trancas.
vaideretro!
figa
saravá três vezes
arruda
pinhão roxo
e espelho na porta
não há nada aqui que interresse
não há nada a cobiçar
essa vidinha de merda é minha

Re.:"querida"

Difícil encontrar a mim mesma ... às vezes me perco e fico sem me ver durante dias, semanas ... tenho procurado embaixo de entulhos, dentro gavetas e bolsos, na mala ainda fechada em cima do guarda roupa ... outro dia! me vislumbrei num bilhete esquecido dentro de um livro de sebo... coisa breve... talvez tenha me confundido...

e agora essa possibilidade de voltar... de revisitar o passado ( ou seria um presente paralelo?) ... começo a rever meu reflexo no espelho da colher... reflexo de dentro (os espelhos planos só nos mostram a superfície): olhos esbugalhados num olhar perplexo de quem encontra um fantasma no momento sonâmbulo do primeiro gole de café ...

ps. “querido”, é verdade que só se escreve em momentos de perplexidade... no momento do susto... como naquele em que se olha pra baixo e vê-se um corpo inteiro sem cabeça e essa coisa frágil, estrangeira e imperfeita é você mesmo! Ou quando se envia gritos pro universo e a mensagem bate no ponto inesperado, ecoando de volta avessa e real como o reflexo na colher...


a menina do poço

No meu quintal tem um poço seco
uma tampa velha de madeira com uma pedra por cima
calam o poço já nem lembro há quanto faz
Todos os dias cedinho
quando ainda é madrugada
levanto descalça
vou até o poço
Na tampa pesada há uma brechinha
sobre a qual me debruço e olho:
dentro do poço
no fundo
uma menina costura roupinhas de boneca
- apesar de eu nunca ter visto uma boneca no poço -
Ela tem os olhos de mar
as mãos de algodão
a pele de sal
e sempre me olha em silêncio
calada como o poço
como se houvesse uma pedra em sua boca
Em seus olhos me vejo como num lago verde de lodo
e reconheço sua saudade e solidão
mas há algo desconhecido em seus olhos que me apavora
Volto correndo para a cama
sujo meus lençóis de terra
passo o resto do dia ali
com saudades da menina do poço
esperando a próxima madrugada
E choro pensando se a menina do poço
sofre de frio ou fome ou de insônia
mas é idiotice chorar assim
A menina do poço não chora nunca
nem por mim

.

mais um sonho. daqueles absurdos. todo prateado, com alienígenas invasores, subterrâneos trens... preciso fugir... só porque vi, não sei ao certo o que vi, mas vi tenho certeza e era pavoroso... preciso fugir...me despedir das coisas, da casa abandonada em pau amarelo, da cama, da mulher ao meu lado que me ajuda a fugir e me faz um último carinho... a mulher é uma garçonete de pub, linda, fiel e bobinha... me ajuda a encontrar as saídas... explodi uma dinamite pela janela... adeus passado, adeus casa da infância e cama onde me escondi embaixo pela última vez. a saída é um labirinto de trilhos e escadas rolantes. muitos níveis abaixo escolho um trem...aleatoriamente... deixo a mulher, deixo ele também. paixão irrealizada e impossível... puro tesão...mas contido... escolho um vagão antigo que mais parece uma carruagem, tento convencer a mulher a vir comigo, suíça, polônia, moscou...deve haver um lugar seguro... ela não vem,fico um pouco aliviada... ele também não vem... peço que me espere, talvez eu volte... quero ter certeza que ele estará lá... o trem parte e eu me abaixo para que ninguém me veja mais, nunca mais... e enquanto se distancia percebo que minhas mãos estão fora de foco e meus pés também, e aos poucos toda eu. meu corpo se transforma num embaçado transparente como uma lembrança que aos poucos vai sendo esquecida.

.

Hoje o menininho vai dormir de luzes acesas
Para não ter mais medo

E ela vai segurá-lo, pequenininho, na sua mão

E se o menininho dormindo

Desperta no meio da hora

De susto, pesadelo ou visão

Ela vai segurá-lo mais perto

Quase na ponta do nariz

De olhos zarolhos e sorriso entre parênteses

Ela vai soprar a barriga pequenina da miniatura em sua mão

De cócegas o menininho, feliz, vai rir

E cansado de gargalhar

Vai deitar outra vez na palma de sua mão

E dormir


Porque às vezes até felicidade cansa

das coisas miúdas


,fantasias somente. espectros imaginados.não restou uma lembrança real sequer. sei da criança magrela,chata e metida que fui somente por fotos e vhs. lembrança orgânica mesmo, registro real, nenhuma além de umas poucas cicatrizes. não lembro do adulto que queria ser ou a profissão que queria ter. me perdi em meio a sonhos nunca realizados, nem mesmo sonhados.
cortei todas as amarras e flutuo ao léu num universo que se constitui de muitas e iguais coisas miúdas quase invisíveis. caminho sempre com os olhos semicerrados, fazendo da realidade uma matéria fluida que se dilui em mim. eu e o rio somos então um só aglomerado de pontículos desfocados perdido na imensidão silenciosa e meticulosamente organizada da normalidade.

miudezas

as coisas pequenas me encantam
maquetes, miçangas, botões
grãos de ervilha, lantejoulas
formigas e abelhas
piscada de olho
milésimos de segundo
colher de chá
coisas de guardar em caixinhas
coisas que caem do bolso furado
clips, biliros, tarracha de brinco
os pequenos sentimentos
a saudade miúda
a dor agudinha no fundo
a lembrança pequenina e emba
çada
o meu coração num dedal

.


bato à porta - ninguém-
faz tempo que saí
minha alma fugiu do cativeiro

gosto tanto desta casa

mas a gora que você também se foi
só restam paredes mudas
quadrados na poeira
e vultos

.

sou um galáxia do avesso ... uma esfera onde tudo se move rumo ao centro se encolhendo-me

da minha enorme pequenez

tudo é pequeno pequenino
e frágil como bibelôs
no centro de mesa da casa da tia brega
o menor espasmo lança tudo ao chão
faz do vidro de novo areia

tudo é pequeno, pequenino
e eu sou invisível a olho nu