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das coisas



era colecionadora por natureza.

mas não de álbuns bonecas chaveiros figurinhas ou dessas coisas todas vendidas em pacotes como fazem as outras crianças.

colecionava miudezas: botões asas de borboleta folha seca besouro fotos de desconhecidos fitas de presente chaves...

e nada novo. tudo usado tudo desprezado rasgado enferrujado jogado fora. tudo que para o resto do mundo não tinha utilidade lhe era de serventia . adotava clipes e biliros achados no chão como quem leva um cachorro rabujo para casa.

ia tudo para a caixa.

não colecionava coisas – pois não as usava com a finalidade para qual tinham sido planejadas suas coisas eram por si: sem finalidade sem presunção sem a obrigação de ter qualquer utilidade além de existir enquanto coisa bela – porque pequena e misteriosa.

não colecionava coisas. colecionava histórias que desconhecia em detalhes pois delas só havia o eco-coisa achado já longe do seu passado

não colecionava coisas. colecionava estrelas – memórias que chegadas não lembravam mais de onde tinham vindo – porque cada miudeza tinha uma luz própria que vinha de muito longe e que ainda brilhava mesmo desbotada rasgada quebrada suja inútil.

E ninguém entendia que enquanto brincava com toda aquela tralha a que chamavam lixo resto inutilidade, a menina brincava de ser divina e era ela o acaso que organizava as estrelas em sitemas solares criando constelações de memórias mortas que ainda ecoavam na existência simples das miudezas na caixa.

gostava de pensar que a caixa era o universo inteiro existindo embaixo da sua cama – como quem cria ratinhos escondido da mãe , ela mantinha o universo cativo e secreto das coisas marginais.

Pensava que um dia também viraria coisa inútil e seria jogada em paz numa gaveta. Ou cairia do bolso do destino e seria coisa-chão, livre da obrigação de ser qualquer coisa além.

2 comentários:

Leo Falcão disse...

o que me faz pensar que o brilho de uma estrela é uma memória em proporções astronômicas…

The sad clown disse...

Esse post lembrou muito a minha infância uma época em que eu adorava colecionar tudo que era desprezado.