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por ser de capricórnio

As costas despelando depois do dia de sol (não qualquer um: a quarta-feira mais quente e linda do ano!) foi culpa da mania hereditária de não pedir ajuda.

Mas o despelar, a pele queimada, morta, só senti uma semana depois, no banho.

Prevendo a dificuldade de dar conta disto também sozinha, dirigi-me às Lojas Americanas mais próximas.

O objeto de desejo: um escovão.

E lá estava: entre, buchas e fivelas de cabelo, o derradeiro atestado da minha total independêcia.

Aí bateu uma angústia esmagadora, uma tristeza de não ter quem esfregasse as minhas costas no banho... e a sensação de que se eu comprasse aquele escovão estaria assumindo uma longa vida de banhos sozinha e costas despelando.

Pensei em mim mesma na frente do ventilador, olhos arregalados tentado tirar um cisco do olho direito, ou caída no chão da cozinha com uma crise de ciático, ou então tendo que tomar um milk shake de ovomaltine sozinha, ou colocar eu mesma o termômetro e checar a temperatura, ou tendo que passar o protetor solar fator 250 quando a camada de ozônio já tiver virado uma lenda! e dezenas de outras pertubadoras projeções...

o escovão? deixei nas Lojas Americanas da Rua das Laranjeiras.. pendurado, com aquela cara de quem descobre um segredo : sim, eu sou uma romântica incurável!mas não conta pra ningém, por favor...

.

devo confessar minha paixão pelos advérbios
essa forma de ser palavra
de conjugar substantivos

de antes da desilusão

A minha mais nova poesia
É um brocado de veludo azul
Onde vou costurar vaga-lumes
Vindos do país de longe
De antes do Vir-a-ser

Da minha nova poesia
Vou fazer um vestido de baile
De saia rodada
Barra bordada
E decote de lua minguante
Para dançar em festas que não existem mais
Onde a orquestra
Vai tocar uma velha canção
Que fará flutuar castiçais
E velhinhas em suas mesas

antes

gostava de ficar à sombra do tempo
debruçada na janela
a sentir o cheiro de melancia que vinha do mar
e brincar de mímica com as nuvens

.


ontem choveu em mim
afogando meus vales
engrossando meus rios
cairam árvores e encostas
trovejaram todos os pensamentos que não gosto de pensar
a ventania derrubou livros e lembranças das estantes

mas quando o vento pára de soprar
o céu se abre um pouquinho
meu cheiro é o de terra molhada
e as aranhas, formigas e abelhas
recolocam tudo
vagarosamente
em seu devido lugar

da minha falsa grandiosidade

eu queria ser
esmagadora
catastrófica
escandalosa
como um vulcão
mas sou miudinha
e caibo quietinha
no teu bolso

o mistério da foto na caixa de leite

e no dia em que ela morreu
para o espanto do médico legista que realizou a autópsia
lá estava
entre o baço e rim esquerdo
o homenzinho há muito desaparecido
desorientado e faminto

.

meus cabelos vermelhos e esse vestido amarelo não disfarçam: minha cor é gris

.

eu vim ao mundo com duas lentes macro no lugar dos olhos
me apego aos detalhes às texturas
e me assusto facilmente com a formiga gigante dentro do pote de açúcar

me dói mais um espinho no pé que um murro no estômago

.

os animais selvagens e as dores deveriam ser inomináveis
determinadas coisas não cabem em palavras
como denominar esse sentimento de orvalho
que fica na beira dos olhos na hora da despedida

.

não sou lá muito afeita aos sinais de pontuação
esses trombos que ficam entre um sentimento e outro
e interrompem o fluxo sanguíneo da poesia

cretinices de amor


talvez se eu
pudesse me virar do avesso
e pôr na mesa
sentimentos e entranhas

e se você
botasse as mãos lá dentro
tateasse com delicada excitação
achasse o teu nome bordado em meu ventrículo esquerdo

juntaria os pedaços
ou puxaria o fio
se assim fosse
deixaria o sangue e a saudade escorrerem quentes pelo chão
ou iria buscar um balde
?

existencialismo fashion


difícil é encontrar
uma roupa que caia
bem sobre esse peito
aberto com as costelas
engaiolando meu coração

e que com combine com meus sapatos azul-magritte

.

qual a matéria da poesia
a cor da angústia
a gramatura da dor

quero imprimir
minha alma numa gráfica
rápida

distribuir nas esquinas
como propanganda de agiota
e vê-la voar raso pelas calçadas sujas da conde da boa vista

.



me faço pequenina,
tamanho de um botão,
só pra você me carregar no bolso e me torturar sempre que tiver raiva.








devia haver um jeito simples de pedir desculpas...mas não há.