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sussurro


como salvar um afogado que se deita no fundo da piscina enfia uma mangueira na boca e abre a torneirinha?

quem chora baixinho enterrado no quintal?

de onde vêm todos os sonhos ruins?

o que fazer com meus suicídios inconscientes?

princípio do reverso

eu quero o avesso

deixar a etiqueta de fora

a bainha desfiada

usar os ossos sem a carne e esculpir neles heras e flores azuis

engolir os cabelos

cuspir escorpiões escarlates


encontrar a nascente das unhas

e num suspiro último aspirar a cidade e suas luzes

para expirar num sopro longo a multidão sombria que habita em mim

insignificância ontológica

vivo num mundo de gigantes
sou o bicho-de-pé da humanidade

auto|autópsia

eu preciso de microscópios para me encontrar
para encontrar em mim minha partícula essencial...
e eu sinto
enquanto isso
em algum lugar muito dentro e muito escuro
a partícula minúscula que passeia escolhendo
o melhor lugar para se esconder de mim
e me comer de dentro para fora
silenciosamente
até eu ser nada
nem sombra
nem sopro
ou idéia


eu vou morrer de mim

egofagia

eu tenho esse desejo estranho de me dilacerar... retalhar a carne, fatiar os ossos,
desfiar os sentimentos e distribuir pelo mundo como lembrancinhas de viagem:
"fui à amanda e lembrei de você".
uma vontade de fim e de eterno, de expansão e fragmentação,
como se fosse possível estar em todos os lugares e amar todas as pessoas
e ao mesmo tempo me livrar mim.

transtorno (ou mensagem aos idiotas do mundo)


já passei as correntes e fechei as trancas.
vaideretro!
figa
saravá três vezes
arruda
pinhão roxo
e espelho na porta
não há nada aqui que interresse
não há nada a cobiçar
essa vidinha de merda é minha

Re.:"querida"

Difícil encontrar a mim mesma ... às vezes me perco e fico sem me ver durante dias, semanas ... tenho procurado embaixo de entulhos, dentro gavetas e bolsos, na mala ainda fechada em cima do guarda roupa ... outro dia! me vislumbrei num bilhete esquecido dentro de um livro de sebo... coisa breve... talvez tenha me confundido...

e agora essa possibilidade de voltar... de revisitar o passado ( ou seria um presente paralelo?) ... começo a rever meu reflexo no espelho da colher... reflexo de dentro (os espelhos planos só nos mostram a superfície): olhos esbugalhados num olhar perplexo de quem encontra um fantasma no momento sonâmbulo do primeiro gole de café ...

ps. “querido”, é verdade que só se escreve em momentos de perplexidade... no momento do susto... como naquele em que se olha pra baixo e vê-se um corpo inteiro sem cabeça e essa coisa frágil, estrangeira e imperfeita é você mesmo! Ou quando se envia gritos pro universo e a mensagem bate no ponto inesperado, ecoando de volta avessa e real como o reflexo na colher...


a menina do poço

No meu quintal tem um poço seco
uma tampa velha de madeira com uma pedra por cima
calam o poço já nem lembro há quanto faz
Todos os dias cedinho
quando ainda é madrugada
levanto descalça
vou até o poço
Na tampa pesada há uma brechinha
sobre a qual me debruço e olho:
dentro do poço
no fundo
uma menina costura roupinhas de boneca
- apesar de eu nunca ter visto uma boneca no poço -
Ela tem os olhos de mar
as mãos de algodão
a pele de sal
e sempre me olha em silêncio
calada como o poço
como se houvesse uma pedra em sua boca
Em seus olhos me vejo como num lago verde de lodo
e reconheço sua saudade e solidão
mas há algo desconhecido em seus olhos que me apavora
Volto correndo para a cama
sujo meus lençóis de terra
passo o resto do dia ali
com saudades da menina do poço
esperando a próxima madrugada
E choro pensando se a menina do poço
sofre de frio ou fome ou de insônia
mas é idiotice chorar assim
A menina do poço não chora nunca
nem por mim

.

mais um sonho. daqueles absurdos. todo prateado, com alienígenas invasores, subterrâneos trens... preciso fugir... só porque vi, não sei ao certo o que vi, mas vi tenho certeza e era pavoroso... preciso fugir...me despedir das coisas, da casa abandonada em pau amarelo, da cama, da mulher ao meu lado que me ajuda a fugir e me faz um último carinho... a mulher é uma garçonete de pub, linda, fiel e bobinha... me ajuda a encontrar as saídas... explodi uma dinamite pela janela... adeus passado, adeus casa da infância e cama onde me escondi embaixo pela última vez. a saída é um labirinto de trilhos e escadas rolantes. muitos níveis abaixo escolho um trem...aleatoriamente... deixo a mulher, deixo ele também. paixão irrealizada e impossível... puro tesão...mas contido... escolho um vagão antigo que mais parece uma carruagem, tento convencer a mulher a vir comigo, suíça, polônia, moscou...deve haver um lugar seguro... ela não vem,fico um pouco aliviada... ele também não vem... peço que me espere, talvez eu volte... quero ter certeza que ele estará lá... o trem parte e eu me abaixo para que ninguém me veja mais, nunca mais... e enquanto se distancia percebo que minhas mãos estão fora de foco e meus pés também, e aos poucos toda eu. meu corpo se transforma num embaçado transparente como uma lembrança que aos poucos vai sendo esquecida.

.

Hoje o menininho vai dormir de luzes acesas
Para não ter mais medo

E ela vai segurá-lo, pequenininho, na sua mão

E se o menininho dormindo

Desperta no meio da hora

De susto, pesadelo ou visão

Ela vai segurá-lo mais perto

Quase na ponta do nariz

De olhos zarolhos e sorriso entre parênteses

Ela vai soprar a barriga pequenina da miniatura em sua mão

De cócegas o menininho, feliz, vai rir

E cansado de gargalhar

Vai deitar outra vez na palma de sua mão

E dormir


Porque às vezes até felicidade cansa

das coisas miúdas


,fantasias somente. espectros imaginados.não restou uma lembrança real sequer. sei da criança magrela,chata e metida que fui somente por fotos e vhs. lembrança orgânica mesmo, registro real, nenhuma além de umas poucas cicatrizes. não lembro do adulto que queria ser ou a profissão que queria ter. me perdi em meio a sonhos nunca realizados, nem mesmo sonhados.
cortei todas as amarras e flutuo ao léu num universo que se constitui de muitas e iguais coisas miúdas quase invisíveis. caminho sempre com os olhos semicerrados, fazendo da realidade uma matéria fluida que se dilui em mim. eu e o rio somos então um só aglomerado de pontículos desfocados perdido na imensidão silenciosa e meticulosamente organizada da normalidade.

miudezas

as coisas pequenas me encantam
maquetes, miçangas, botões
grãos de ervilha, lantejoulas
formigas e abelhas
piscada de olho
milésimos de segundo
colher de chá
coisas de guardar em caixinhas
coisas que caem do bolso furado
clips, biliros, tarracha de brinco
os pequenos sentimentos
a saudade miúda
a dor agudinha no fundo
a lembrança pequenina e emba
çada
o meu coração num dedal

.


bato à porta - ninguém-
faz tempo que saí
minha alma fugiu do cativeiro

gosto tanto desta casa

mas a gora que você também se foi
só restam paredes mudas
quadrados na poeira
e vultos

.

sou um galáxia do avesso ... uma esfera onde tudo se move rumo ao centro se encolhendo-me

da minha enorme pequenez

tudo é pequeno pequenino
e frágil como bibelôs
no centro de mesa da casa da tia brega
o menor espasmo lança tudo ao chão
faz do vidro de novo areia

tudo é pequeno, pequenino
e eu sou invisível a olho nu