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das coisas



era colecionadora por natureza.

mas não de álbuns bonecas chaveiros figurinhas ou dessas coisas todas vendidas em pacotes como fazem as outras crianças.

colecionava miudezas: botões asas de borboleta folha seca besouro fotos de desconhecidos fitas de presente chaves...

e nada novo. tudo usado tudo desprezado rasgado enferrujado jogado fora. tudo que para o resto do mundo não tinha utilidade lhe era de serventia . adotava clipes e biliros achados no chão como quem leva um cachorro rabujo para casa.

ia tudo para a caixa.

não colecionava coisas – pois não as usava com a finalidade para qual tinham sido planejadas suas coisas eram por si: sem finalidade sem presunção sem a obrigação de ter qualquer utilidade além de existir enquanto coisa bela – porque pequena e misteriosa.

não colecionava coisas. colecionava histórias que desconhecia em detalhes pois delas só havia o eco-coisa achado já longe do seu passado

não colecionava coisas. colecionava estrelas – memórias que chegadas não lembravam mais de onde tinham vindo – porque cada miudeza tinha uma luz própria que vinha de muito longe e que ainda brilhava mesmo desbotada rasgada quebrada suja inútil.

E ninguém entendia que enquanto brincava com toda aquela tralha a que chamavam lixo resto inutilidade, a menina brincava de ser divina e era ela o acaso que organizava as estrelas em sitemas solares criando constelações de memórias mortas que ainda ecoavam na existência simples das miudezas na caixa.

gostava de pensar que a caixa era o universo inteiro existindo embaixo da sua cama – como quem cria ratinhos escondido da mãe , ela mantinha o universo cativo e secreto das coisas marginais.

Pensava que um dia também viraria coisa inútil e seria jogada em paz numa gaveta. Ou cairia do bolso do destino e seria coisa-chão, livre da obrigação de ser qualquer coisa além.

solidão é normal. a gente nasce só e morre só. mas é que algumas vezes na vida, por raros momentos, a solidão de um toca a do outro. aí as solidões se encostam e ficam alí se escorando, fazendo um carinho de tangente.

*nota mental: solidão é normal, cedo ou tarde a solidão de um se afasta da solidão do outro e nem adianta insistir, porque quando a solidão sisma em partir não tem quem segure ela.

ah! o amor



num dia como outro qualquer você acorda cara amassada

toma o café já frio esquece o fio dental

pega ônibus desce acena bom dia com licença

sonâmbula vira a esquina e bum! dá de cara com o amor

vê o amor te vendo e fazendo cara de quem não te conhece

aí o amor vai passando e deixa cair um papel com o número do telefone

e você procurando o isqueiro na bolsa nem percebe

o que fazer com os pesadelos? pergunte a Lars




A Confissão do Diretor
(Carta apresentada à imprensa durante o Festival de Cannes. post original em http://cinemascopiocannes.blogspot.com/)

"Dois anos atrás, eu sofri uma depressão. Foi uma experiência nova para mim. Tudo, não importava o quê, me parecia sem importância, trivial, não conseguia trabalhar.
Seis meses depois, como um exercício, escrevi um roteiro. Foi um tipo de terapia, mas também uma procura, um teste para ver se conseguiria fazer um outro filme.

O roteiro foi finalizado e filmado sem muito entusiasmo, feito de uma maneira que usou aproximadamente 50% das minhas capacidades físicas e intelectuais.

O trabalho no roteiro não seguiu meu modus operandi de sempre. Cenas foram acrescentadas sem nenhum motivo. Imagens foram compostas sem lógica ou reflexão dramática. Elas geralmente vinham de sonhos que estava tendo na época, ou de sonhos que tinha tido em outros momentos da minha vida.

Mais uma vez, o assunto era a "natureza", mas de uma maneira diferente e mais direta do que antes. Mais pessoal.

O filme não contém um código moral específico e contém o que alguns poderão chamar de "necessidades básicas mínimas" em termos de trama.

Eu lia Strindberg quando era jovem. Li com entusiasmo o que escreveu antes que ele foi para Paris onde virou alquimista e durante a sua fase lá... o período conhecido como "crise do inferno" - será que Anticristo foi a minha crise do inferno? Minha afinidade com Strindberg?

De qualquer forma, não tenho como pedir desculpas por Anticristo, além da minha crença absoluta no filme - o filme mais importante de toda a minha carreira!"

Lars Von Trier, Copenhagen, 25/3/09


das coisas que fazem eco

coisa boa é ganhar poesia de presente
esse mimo de desanivesário acabou de chegar da minha gêmea saturnina,
simone jubert
artigo de luxo...






Idade Madura Carlos

Carlos Drummond de Andrade

As lições da infância
desaprendidas na idade madura.
Já não quero palavras, nem delas careço.
Tenho todos os elementos
Ao alcance do braço.
Todas as frutase consentimentos.
Nenhum desejo débil.
Nem mesmo sinto falta do que me completa e é quase sempre melancólico.
Estou solto no mundo largo.
Lúcido cavalo
com substância de anjo
circula através de mim.
Sou varado pela noite, atravesso os lagos frios,
Absorvo epopéia e carne,
bebo tudo,
desfaço tudo,
torno a criar, a esquecer-me:
Durmo agora, recomeço ontem.
De longe, vieram chamar-me.
Havia fogo na mata.
Nada pude fazer,
nem tinha vontade.
Toda a água que possuía
irrigava jardins particulares
De atletas retirados, freiras surdas, funcionários demitidos.


Nisso, vieram os pássaros,
rubros sufocados, sem canto,
e pousaram a esmo.
Todos se transformaram em pedra.
Já não sinto piedade.

Antes de mim outros poetas,
depois de mim outros e outros
estão cantando a morte e a prisão.
Moças fatigadas se entregam, soldados se matam
No centro da cidade vencida.
Resisto e penso
numa terra enfim despojada de plantas inúteis,
num país extraordinariamente, nu e terno,
qualquer coisa de melodioso,
não obstante mudo,
além dos desertos onde passam tropas, dos morro
sonde alguém colocou bandeiras com enigmas,
e resolvo embriagar-me.

Já não dirão que estou resignado
e perdi os melhores dias.
Dentro de mim, bem no fundo,
Há reservas colossais de tempo,
Futuro, pós-futuro, pretérito,
Há domingos, regatas, procissões,
Há mitos proletários, condutos subterrâneos,
Janelas em febre, massas da água salgada, meditação e sarcasmo.
Ninguém me fará calar, gritarei sempre
que se abafe um prazer, apontarei os desanimados,
negociarei em voz baixa com os conspiradores,
transmitirei recados que não se ousa dar nem receber,
serei, no circo, o palhaço,
serei, médico, faca de pão, remédio, toalha,
serei bonde, barco, loja de calçados, igreja, enxovia,
serei as coisas mais ordinárias e humanas, e também as excepcionais:
tudo depende da hora
e de certa inclinação feérica,
viva em mim qual um inseto.

Idade madura em olhos, receitas e pés, ela me invade
com sua maré de ciências afinal superadas.
Posso desprezar ou querer os institutos, as lendas,
descobri na pele certos sinais que aos vinte anos não via.

Eles dizem o caminho,
embora também se acovardemem
face a tanta claridade roubada ao tempo.
Mas eu sigo, cada vez menos solitário,
em ruas extremamente dispersas,
transito no canto homem ou da máquina que roda,
aborreço-me de tanta riqueza, jogo-a toda por um número de casa,
e ganho.

dos pequenos gestos

sendo brevidade
num universo em constante expansão rumo ao infinito
é surpreendente encontrar delicadezas vizinhas
essa veio embrulhada em papel de seda
com laçarote de cetim e tudo





uma conversa dez anos antes de maria flor ir embora

cadê você?
aqui
explica como é que funciona
porque eu já tô prestes a desistir
o que?
isso...
as pessoas se interessam por outras
elas saem
elas ficam
elas namoram
parece simples
mas eu não entendo
é simples
o mecanismo
não acontece
não funciona
por que não?
acho que tu fica esperando...
quando a gente espera, nunca acontece
pelo menos é assim que é comigo
não...
não é esperar
o que é?
eu espero um ônibus na parada
porque sei que cedo ou tarde ele passa
eu espero começar um filme, na hora da sessão
e normalmente ele começa
espero que uma hora o sono chegue
e na maioria das vezes ele chega
isso é esperar
tu não acha que uma relação pode chegar também?
não
porque isso não faz parte da natureza
da natureza de ter uma relação
por que tu acha que não?
as pessoas nascem sozinhas e morrem sozinhas
isso faz parte da natureza
da natureza de estar só
então você pode esperar ficar só
ou
fazer algo, que não é esperar, pra conseguir dividir algo com alguém



leia mais sobre maria flor em: http://fiodor.blogspot.com/
obrigada, lilo


felicidade devia ser vendida em armarinho
entre botões e fitas de cetim
no setor de miudezas.


por ser assim


encontrar uma forma de se adequar ao mundo. essa era uma de suas maiores preocupações. acostumada a ausência de intermediários entre sua pele e a atmosfera, o toque do tecido era como tortura. mais que isso: amarrava seus movimentos, pesava sobre o corpo deixando seus passos mais pesados. para não mencionar os sapatos, aquelas âncoras de couro e borracha que isolavam seus pés da terra. locomover-se assim era como ser cega. pois ela sabia dos caminhos pelas pedras ou pela direção do vento que passava sob seus braços.

assim, aprender a ser gente, fabricar-se nesse bicho coberto de predicados e adjetivos, foi tarefa das mais difíceis. como uma criança que tem dificuldade para ler, ela se deixou torturar por castigos e lições. aprendeu aos poucos a pisar com passos mais curtos e retos, a não andar de braços abertos na rua e não rodopiar quando o vento mudasse de direção. aos poucos desaprendeu a ler as saliências do chão com a sola dos pés, esqueceu a língua formigas, as folhas já não sussurravam segredos em seus ouvidos e dançar virou uma atividade restrita aos salões e a passos indexados.



havia se tornado mulher.

dos desencontros




gastei todas as minha lamurias de amor
você venceu eu calei

recolhi as roupas e os bilhetes
você mandou eu obececi

guardei os olhares e todos os charmes
você cantou eu desafinei

desaprendi tua lingua e teus sinais
você falou eu não entendi

estendi bandeiras e perdões aos teus pés
você passou eu só olhei

quebrei copos pedras e pernas
você cansou eu machuquei

depois de malas feitas e dores divididas
você foi eu fiquei


hermeto se escuta de olhos fechados
porque ele pinta no avesso da pálpebra paisagens de sons
saí do concerto cheia de música:
nos bolsos, embaixo das unhas, enroscada nos cabelos, gravada nos ossos
escosta o ouvido em mim que dá pra ouvir ele tocando


na minha retina tem um retrato dela
e no peito, colado no avesso,
um post-it " eu te amo" escrito de caneta bic


parece que ela tem a sorte a seu favor
tudo cai aos seus pés
o mundo foi feito para morrer de amores por ela

mas ela passa e nem percebe
que eu construí o mundo assim
que tudo é perfeito e fácil
porque eu quis assim

da casa à calçada
a rua, o jardim
sou eu o arquiteto da felicidade dela
e ela de tão feliz
nem me nota


que castigo é sentir...
e de que me vale?
sentir não é talento nem dom
muito menos profissão

e sentir tanto assim
me impede de ser coisa além
desse coração rasgado e exposto
à visitação pública

da minha janela

a partir de hoje expandindo meu microcosmo para as miudezas alheias
essa me entrou pela janela e veio parar na gaiola aberta onde vive meu coraçãozinho que tem preguiça de voar


estória de passarins

hoje acordei com a visita de um primo passarim. era um vira-lata da estirpe dos de asas, um reles papa-capim, um dos plebeus voantes de que mais gosto. essa ausência de nobreza lhe dá um sentido sobretudo de levezas. ele me adentrou pela varanda, veio dizer-me de coisas do tempo de eu menina. lembrei-me de um aniversário me feito pela mãe. ela é mesmo intérprete fluente de criança. ela me fez de presente um bolo imenso, que de longe tinha certos ares de... vulcão. era um formato atípico para bolos, mas minha mãe sempre gostava de inventar novidades. a minha roupa nova de parabéns era amarelo canário, tinha umas caixinhas com bombons que lembravam ninhos. era mesmo um aniversário de passarinha. mas o mais melhor veio na agonia da hora de cantar parabéns. o bolo ficara na cozinha, guardado, esperando a hora de entrar em cena. mas ninguém se deu conta do porquê. é que havia um convidado especial. o bolo tinha uma fita azul em cima, cantaram-me um parabéns meio afobado, apressado. aí, sopra a velinha e puxa a fita. sai voando um canário azul, maravilhante, de dentro do meu bolo. minha mãe me deslumbrou por dias seguidos com esse passarim voado de bolo, pareceu coisa de mágico. e o canarinho viveu e deu nascença a uma dinastia canária em meu lar. eles viviam num viveiro enorme e mesmo quando eu os soltava, eles voavam e voltavam pro viveiro. aprendi de prática a criar-me passarim solto.

lagarta

do amor

esse elefante branco que a gente não sabe onde estacionar

das coisas imensuráveis


meu corpo já não é um corpo só


inteiro


molecular


celular


meu corpo é uma nesga de luz


que rasga a carne


e se estende infinito


onde só alcançam os dedos da lembrança perdida


lugar qualquer entre o primeiro átomo e hoje


ali no espaço minúsculo entre os ossos e alma

bulimia


rasgar a boca
esse risco que é minha boca
e que espalha a idéia pelo ar
essa nesga
esse rastro
essa rachadura entre o que pretendo ser e o que digo
boca
buraco
fenda
saída
entrada
rasgo
risco
abismo de sentidos
palavra mal dita
desencontro entre o pretenso e o dito
entre o que sou e o que digo
boquete
palavrão
heresia
prazer
paladar
vômito
buraco
bueiro
buraco
entrada
buraco
saída
minha alma estendida num varal que se pendura entre pré-molares
boca
buraco
fenda
buraco
boca
dentes
minha alma no espaço-entre-ossos
eu fantasma
verbo-alucinação
eu
boca
boquete
garganta
você-eu
língua
eu-você
e as estrelas brincam de big bang por trás do meu umbigo

.

vem de longe
de antes de tudo
o meu saber te amar

veio na poeira da primeira explosão
no silêncio do todo
se movendo

e chegou aqui bilhões de anos depois
intacto, ainda na embalagem
com cheiro de novo e embrulhado para presente

aluga-se


quando é que se escolhe a vida?

quero você, meu amor quitinete

onde eu me espalho e atulho coisas
penduro nas paredes
esparramo pelo chão
empilho nos cantos

habitando, espaçosa, teu coração de alvenaria e paredes brancas

.

coloquei meu corção no penhor

.

a geografia da amizade é dilacerante
eu fico assim
despedaçada
um pedaço de carne
pulsante e vermelha
em cada lugar
onde vive um amigo

.existencialismo tropical

Acordei com vontade de comer pitangas
Como alguém esquecido que voltasse do mar
me lambuzar
manchar todas as camisas
e as cortinas da sala

hoje quero cair em cheio
como a chuva que vem de lá
molhar o chão do quarto de hotel
desfazer malas e certezas

e ao olhar no espelho
ver que penso tudo que vejo
e sinto com minha razão
como quem comesse pitangas

das coisas que permanecem




Depois de dois anos morando fora, voltei para casa dos meus pais. Remexendo em minhas coisas (que a essa altura já foram parar na garagem) encontrei minhas agendas: os diários da minha adolescência, tempo em que o maior problema da minha existência era Felipe Mendonça do 1° C não retribuir meus olhares.

Mas entre papéis de chocolate e poesias do Vinícius, encontrei vestígios da Amanda de hoje. Do alto dos meus 14 anos já detestava filmes dublados, donzelices, pessoas mal vestidas e festas de 15 anos. Descobri também que minha maior felicidade ao trocar de turma no primeiro ano de escola foi descobrir que nela só havia 10 meninos e 32 meninas(!!!). Mas nem adianta pensar: que sapinha safada! Nessa época eu estava ocupada demais em ter paixões platônicas por meninos que não davam a menor bola para mim. Além do mais, em breve descobria que a maioria das 32 era insuportável, que os meninos eram muito mais legais e que eles é que seriam meus amigos durante todo o 2º grau.

Lembrei de como eu me sentia diferente dos outros (e gostava disso!), do meu gosto por escrever, da paixão pela poesia, de como eu me sentia segura por ser quem eu era e por minha beleza fora dos padrões. Eu já estava ali. Não importa o quanto a escola e os outros tentassem me dizer que o certo é ser igual, que existe um Deus cruel e vingativo, que mulher que anda fora da linha pode ser chamada de puta ou sapatão (eu fui chamada dos dois, claro! e sem motivo, juro!) e que a felicidade está endereçada só pra quem chegar ao fim daquela linha sem ter pisado fora.

E foi ali, em meados de abril 1996, que dei de cara com uma frase esquecida desde então, e que hoje entendo melhor: “Faze do teu delito o vão que te permite ver o sol”. Como se com a minha sabadoria larga e rasa de 14 anos, eu tivesse colado aquele conselho ali sabendo que 13 anos depois o teria posto em prática.

Mesmo que o meu “delito” tenha ocorrido tão longe de casa e do olhar tão crítico da minha mãe, me sinto orgulhosa dos meus “pecados” e do caminho ensolarado que percorro desde então.

ah! a frase é da Cássia Eller