No meu quintal tem um poço seco
uma tampa velha de madeira com uma pedra por cima
calam o poço já nem lembro há quanto faz
Todos os dias cedinho
quando ainda é madrugada
levanto descalça
vou até o poço
Na tampa pesada há uma brechinha
sobre a qual me debruço e olho:
dentro do poço
no fundo
uma menina costura roupinhas de boneca
- apesar de eu nunca ter visto uma boneca no poço -
Ela tem os olhos de mar
as mãos de algodão
a pele de sal
e sempre me olha em silêncio
calada como o poço
como se houvesse uma pedra em sua boca
Em seus olhos me vejo como num lago verde de lodo
e reconheço sua saudade e solidão
mas há algo desconhecido em seus olhos que me apavora
Volto correndo para a cama
sujo meus lençóis de terra
passo o resto do dia ali
com saudades da menina do poço
esperando a próxima madrugada
E choro pensando se a menina do poço
sofre de frio ou fome ou de insônia
mas é idiotice chorar assim
A menina do poço não chora nunca
nem por mim
a menina do poço
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mais um sonho. daqueles absurdos. todo prateado, com alienígenas invasores, subterrâneos trens... preciso fugir... só porque vi, não sei ao certo o que vi, mas vi tenho certeza e era pavoroso... preciso fugir...me despedir das coisas, da casa abandonada em pau amarelo, da cama, da mulher ao meu lado que me ajuda a fugir e me faz um último carinho... a mulher é uma garçonete de pub, linda, fiel e bobinha... me ajuda a encontrar as saídas... explodi uma dinamite pela janela... adeus passado, adeus casa da infância e cama onde me escondi embaixo pela última vez. a saída é um labirinto de trilhos e escadas rolantes. muitos níveis abaixo escolho um trem...aleatoriamente... deixo a mulher, deixo ele também. paixão irrealizada e impossível... puro tesão...mas contido... escolho um vagão antigo que mais parece uma carruagem, tento convencer a mulher a vir comigo, suíça, polônia, moscou...deve haver um lugar seguro... ela não vem,fico um pouco aliviada... ele também não vem... peço que me espere, talvez eu volte... quero ter certeza que ele estará lá... o trem parte e eu me abaixo para que ninguém me veja mais, nunca mais... e enquanto se distancia percebo que minhas mãos estão fora de foco e meus pés também, e aos poucos toda eu. meu corpo se transforma num embaçado transparente como uma lembrança que aos poucos vai sendo esquecida.
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Hoje o menininho vai dormir de luzes acesas
Para não ter mais medo
E ela vai segurá-lo, pequenininho, na sua mão
E se o menininho dormindo
Desperta no meio da hora
De susto, pesadelo ou visão
Ela vai segurá-lo mais perto
Quase na ponta do nariz
De olhos zarolhos e sorriso entre parênteses
Ela vai soprar a barriga pequenina da miniatura em sua mão
De cócegas o menininho, feliz, vai rir
E cansado de gargalhar
Vai deitar outra vez na palma de sua mão
E dormir
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das coisas miúdas
,fantasias somente. espectros imaginados.não restou uma lembrança real sequer. sei da criança magrela,chata e metida que fui somente por fotos e vhs. lembrança orgânica mesmo, registro real, nenhuma além de umas poucas cicatrizes. não lembro do adulto que queria ser ou a profissão que queria ter. me perdi em meio a sonhos nunca realizados, nem mesmo sonhados.
cortei todas as amarras e flutuo ao léu num universo que se constitui de muitas e iguais coisas miúdas quase invisíveis. caminho sempre com os olhos semicerrados, fazendo da realidade uma matéria fluida que se dilui em mim. eu e o rio somos então um só aglomerado de pontículos desfocados perdido na imensidão silenciosa e meticulosamente organizada da normalidade.
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miudezas
as coisas pequenas me encantam
maquetes, miçangas, botões
grãos de ervilha, lantejoulas
formigas e abelhas
piscada de olho
milésimos de segundo
colher de chá
coisas de guardar em caixinhas
coisas que caem do bolso furado
clips, biliros, tarracha de brinco
os pequenos sentimentos
a saudade miúda
a dor agudinha no fundo
a lembrança pequenina e embaçada
o meu coração num dedal
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faz tempo que saí
minha alma fugiu do cativeiro
gosto tanto desta casa
mas a gora que você também se foi
só restam paredes mudas
quadrados na poeira
e vultos
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da minha enorme pequenez
no centro de mesa da casa da tia brega
o menor espasmo lança tudo ao chão
faz do vidro de novo areia
tudo é pequeno, pequenino
e eu sou invisível a olho nu
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