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de antes da desilusão

A minha mais nova poesia
É um brocado de veludo azul
Onde vou costurar vaga-lumes
Vindos do país de longe
De antes do Vir-a-ser

Da minha nova poesia
Vou fazer um vestido de baile
De saia rodada
Barra bordada
E decote de lua minguante
Para dançar em festas que não existem mais
Onde a orquestra
Vai tocar uma velha canção
Que fará flutuar castiçais
E velhinhas em suas mesas

antes

gostava de ficar à sombra do tempo
debruçada na janela
a sentir o cheiro de melancia que vinha do mar
e brincar de mímica com as nuvens

.


ontem choveu em mim
afogando meus vales
engrossando meus rios
cairam árvores e encostas
trovejaram todos os pensamentos que não gosto de pensar
a ventania derrubou livros e lembranças das estantes

mas quando o vento pára de soprar
o céu se abre um pouquinho
meu cheiro é o de terra molhada
e as aranhas, formigas e abelhas
recolocam tudo
vagarosamente
em seu devido lugar

da minha falsa grandiosidade

eu queria ser
esmagadora
catastrófica
escandalosa
como um vulcão
mas sou miudinha
e caibo quietinha
no teu bolso

o mistério da foto na caixa de leite

e no dia em que ela morreu
para o espanto do médico legista que realizou a autópsia
lá estava
entre o baço e rim esquerdo
o homenzinho há muito desaparecido
desorientado e faminto